Uma noite de sábado com Vatel, o gênio exagerado que não admitia limites em sua cozinha

Publicado em: 5 maio 2016

Por: Esther Rocha

Na França do século XVII, um chef de cozinha comprovou não conhecer limites na hora de exercitar sua arte. Fiel serviçal de Nicolas Fouquet, Superintendente do Tesouro da França e um dos homens mais da época, François Vatel (Paris, 1631- Chantilly, 1671) era famoso por sua paixão pelo trabalho e sua exagerada mania de perfeição.

Há anos eu queria ver esse filme, mas a oportunidade nunca aparecia. Na noite deste sábado frio em São Paulo, de repente, um amigo querido me surpreendeu com este presente: o DVD do filme Vatel e uma garrafa de vinho francês. Combinação perfeita! E finalmente, 15 anos após seu lançamento, finalmente eu assisti Vatel, de Roland Joffé.

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Não sei o que os críticos falaram sobre este filme, e nem me interesso em saber. Eu só sei que adorei e viajei imaginando como seria uma cozinha naqueles tempos pós idade média. A cenografia é perfeita, o filme foi rodado no Castelo de Chantilly, norte da França e conseguiu retratar a grandiosidade da época. Gerard Depardieu tem estilo de sobra para o papel, como bom francês, ele tem cara de gourmet e encarnou o chef com perfeição.

A trilha sonora também é uma delícia, lá no final do post vou embedar um link do youtube onde é possível ouvir todas as canções criadas por Ennio Morricone para o filme.

Terminei minha noite com vontade de ir pra cozinha me aventurar em alguma preparação com sotaque francês.

Um gênio louco em busca da perfeição

François Vatel faz parte da história da gastronomia. Ele nasceu em Paris, numa família humilde, e ao 15 anos começou a trabalhar como aprendiz com o confeiteiro Jehan Heverard, padrinho do seu irmão. Aos 22 anos chegou à corte para trabalhar como auxiliar do cozinheiro no Château de Vaux-le-Vicomte, nos arredores de Paris.

Passados alguns anos, Vatel desbancou seu professor e passou a ocupar o seu lugar. Sua genialidade na cozinha superou os empecilhos impostos pela timidez que herdara do berço humilde e ele passou a comandar não comente a cozinha, como toda a administração do lugar.

Em 1671 Vatel foi convidado pelo Príncipe de Condé para organizar a grandiosa Festa dos Três Dias, oferecida no Castelo de Chantilly para receber Luis XIV, conhecido como o Rei Sol, e sua comitiva com mais de 3 mil pessoas.

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Apaixonado pela perfeição e pela grandiosidade, ele criou o maior evento da época e comandou cada detalhe da grandiosa recepção. Inspirado em um evento criado por Leonardo da Vinci, dois séculos antes, Vatel dividiu os dias da festa em temas diferenciados. Um projeto insano que segundo os historiadores, representava uma jornada diária de 18 a 20 horas de trabalho para preparar os cinco serviços diários, cada um deles marcado por um número absurdo de preparações.

No primeiro dia Vatel exaltou a glória do sol e a abundância da natureza, no segundo dia panejou um espetáculo com ópera, luzes e fogos de artificio à beira de um lago. Para o último dia Vatel criou uma mega banquete de pescados que seriam servidos num ambiente reproduzindo um mar de gelo, um tributo de Netuno à Helius, o deus do sol da mitologia grega. As estrelas desse banquete seriam um filé de linguado, anchovas, melão com presunto de Parma, lagosta com molho de camarão, pernil de carneiro, pato ao molho de vinho Madeira e bombas de morango.

Para garantir que não teria problemas no último dia de banquete, Vatel tratou de encomendar pescados e frutos do mar em vários portos da região, mas nem toda essa precaução o salvou de um imprevisto. Às vésperas do grande evento final, os fornecedores chegam ao castelo carregando apenas uma pequena porção da encomenda. Cansado e com medo de ver seu grande projeto fracassar por falta de ingredientes, na noite anterior Vatel subiu até seu quarto, degustou uma ceia de despedida e se matou atravessando uma espada em seu peito.

Contam que os gemidos de Vatel ecoaram pelo castelo, despertando todos os convidados. Por ironia do destino, horas depois de sua morte, um novo carregamento de pescados foi entregue conforme prometido. Diz a lenda que o banquete foi servido normalmente, mas em respeito ao grande chef, sei famoso prato de linguado não foi servido.

São muitas as passagens contadas sobre a morte de Vatel. Há quem garanta que ele se matou por estar frustrado e decepcionado com a maneira como era tratado pela realeza que o tratava como um mero objeto. A versão se apoia na passagem que o Príncipe Condé, tratando-o como um escravo, apostou o seu destino num jogo de cartas com Luis XIV. Ao perder a partida, o patrão se viu obrigado a entregar seu passe para o genioso Rei Sol, que queria de todo jeito ter o famosos chef trabalhando na cozinha de seu Palácio de Versalles.

O criador do Chantilly?

Embora muitos atribuam a Vatel a criação do creme de chantilly, alguns historiadores contestam essa versão dizendo que, na Idade Média, os confeiteiros da casa dos Médicis, em Florença, já faziam esse tipo de creme batido e misturado com açúcar e aromas.

Outras famosas criações de Vatel são o Arroz Condé (um bolo de arroz doce com frutas), o Purê Condé (feito com feijões vermelhos), a manteiga Colbert (preparada com glace de carne), o Linguado Colbert e as Chuletas de Porco Colbert, criados em homenagem a Juan Bautista Colbert, conselheiro e ministro das finanças.