10 vezes que uma cozinheira me deu aula de culinária e amor

Publicado em: 27 jun 2017

sabores do palacio- filme

Por: Esther Rocha

Danièle Mazet-Delpeuch trabalhou durante dois anos (1988 na 1990) como cozinheira pessoal do presidente francês François Mitterrand. O filme que conta a sua história é sensacional e mantenho ele na ‘cabeceira’ do meu Netflix pra poder rever quantas vezes quiser. E, por incrível que pareça, cada vez que assisto, descubro um novo detalhe, uma dica culinária familiar, me encanto até com as panelas que aparecem em cena.

Cada vez que vejo ”Os sabores do palácio”, viajo com a riqueza dos detalhes. Como não amar ver madame Hortense Laboriev dizer que gosta de falar de comida como quem lê um livro clássico e raro.

No filme, Danièle ganha o nome de Hortense Laboriev (Catherine Frot), uma cozinheira amadora que vive numa fazenda na França e se dedica ao cultivo de produtos locais com o capricho de quem cuida de um bebê. Grande parte da história se passa no Palais de l’Élysée em Paris, residência oficial do presidente (Jean d’Ormesson).

Separei dez cenas que eu adoro:

1- Tem algo mais fofo do que uma senhora elegante que tem mania de conversar com ela mesma enquanto cozinha? Hortense é assim e fala em voz alta o passo a passo de sua produção.
“Quando cozinho tenho que dizer tudo o que estou fazendo”.

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2 – Esta é a cena mais incrível do filme. Hortense prepara um ‘Le chou farci au saumon braisé aux petits lardons’(Couve de milão recheada com salmão escocês e cenouras do vale do luar). O preparo do prato, detalhado em close, parece um poema.

Uma aula de culinária narrada em detalhes com paixão e conhecimento raro.

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3 – Na primeira conversa que teve com Hortense o presidente pede: “faça comida francesa verdadeira, simples, de ‘terroir’. Me dê o melhor da França. Detesto complicação, preparações super elaboradas e arranjos inúteis […] Preciso reencontrar o gosto das coisas simples, verdadeiras”. Alto lá pra quem pensa que o chefe da nação era chegado num PF básico. Assim como a maioria dos franceses, o “simples” do presidente equivale a mais alta gastronomia, com requintes de ingredientes orgânicos, vindos diretamente do produtor.

Imagine o sentimento de uma cozinheira, acostumada com a rotina tranquila de sua fazenda no interior, na Provence, ser indicada por ninguém menos que o chefe Joël Robuchon, premiado com 26 estrelas Michelin em seus 20 restaurantes espalhados pelo mundo. Ele não era amigo de Hortense (Danièle), mas bastou um encontro para ele perceber a sua competência.

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4 – Dia desses escrevi sobre Ella Fitzgerald, que tinha mania de ler livros de culinária como se fossem romances. Neste filme o presidente revela à Hortense que, quando criança, se encantava com a maneira como alguns autores escreviam suas receitas como poesia.“Quando eu era criança, lia livros de culinária. O de Édouard Nignon era o meu favorito. As suas receitas me faziam sonhar e eu as sabia de cór […] Da terra de Pierre Corneille (a Normandia) mande trazer um pato bem rechonchudo”.

 livro Eloges de lacuisinefrançaise de Edouard Nignon

5 – Tempos depois, Hortense recebe o livro “Eloges de lacuisinefrançaise” de Edouard Nignon, como um presente do presidente. Ela também se encanta ao ler algumas frases em voz alta: “Mande vir a terra dos fartos pastos, dessa Normandia onde prevalecem vacas e vitelas de alta qualidade, uma sela de vitela, cuja carne será tão branca quanto a das melhores aves. Prepare-a, amarre com quatro voltas de barbante. Doure a manteiga clara numa frigideira rasa”.

*Édouard Nignon (1865-1934) cozinhou para o czar da Rússia, o imperador da Áustria e o presidente dos Estados Unidos. Ele é considerado por Nestor Luján, no livro Historia de la Gastronomía o “mais refinado, mais perfeito, equilibrado e sereno”. O livro “Eloges de lacuisinefrançaise” foi publicado pela primeira vez em 1933 e que influenciou chefs da turma de Carême, Dugléré, Escoffier, entre outros. São seiscentas receitas escritas quase como versos.

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6 – A relação entre o assistente Nicolas (Arthur Dupont) e Hortense é emocionante. O rapaz, que inicialmente era apenas mais um confeiteiro do palácio, entende o quanto a cozinheira tem para ensiná-lo e se entrega totalmente ao comando de chefe. Ele é muito bonitinho. Quase no final do filme Nicolas analisa uma sobremesa preparada pelo chefe rabugento da cozinha geral do palácio. E manda bem pra caramba em seus comentários”“Mil folhas de chocolate e baunilha, Bourbon e ganache de laranja amarga: “Baunilha com laranja amarga não fica bom. Quando a gente mastiga um pedaço de baunilha, já está áspero, é amargo. Então não fica bem com laranja amarga. É excessivo”.

Hortense completa a análise com uma pitada de sarcasmo: “Não tem personalidade, qualquer um poderia fazer. Também não tem assinatura. Mas as groselhas frescas estão ótimas”.

Num outro momento, Nicolas explica a Hortense uma sobremesa criada por ele: “Creme de amêndoas, geleia de sabugueiro que “acrescenta um lado floral que vai quebrar o amargo do creme. Além disso ela tem um gosto de balas da minha infância. Temos uma sobremesa que terá gosto que vai nos trazer lembranças de infância, sem cair na demagogia dos bolos de morangos, dos sorvetes, etc”.

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7 – Trufas, como não amar? Eu amo e sonho com elas. Hortense encomenda uma bela porção de trufas negras para servir ao presidente. Tradicionalmente encontrada no condado de Périgord, na França, as trufas negras representam uma iguaria de sabor único. Quando se fala no “terroir” da trufa essa referência é relativa à origem desse raro fungo que se desenvolve naturalmente nas raízes das arvores (geralmente carvalho e avelã). Assim a trufa tem as características do lugar onde foi encontrada, ou seja, esse é o seu “terroir “.

Hortense liga para um produtor amigo e encomenda quatro quilos de “trufas frescas e pequenas, do tamanho de uma rolha de champagne”. Mais adiante ela aparece na cozinha, num momento tranquilo, à noite, servindo uma bela fatia de pão caseiro com uma boa camada de manteiga aromatizada e fartas fatias de trufa por cima.Hortense cortando as lascas de trufas e colocando-as em uma fatia de pão, me desperta a mais incontrolável cobiça.

Conhecedor da boa comida, o presidente comenta com satisfação: “Imagino que estas são as primeiras da estação”.Para acompanhar ela serviu um tinto Chateau Rayas 1969.

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8- Hortência passa para Nicolas a receita do molho para salada criado com requintes de detalhes. O sous-chef executa com estilo.

“1/3 de vinagre balsâmico

1/3 de óleo de nozes

Um bom 1/3 de azeite

E um pequeno 1/3 de suco cítrico”

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9- Hortense elabora o menu de um almoço especial, onde o presidente receberá seus familiares em um evento anual que requer requinte, bom gosto e sabores especiais:

Cassoulet de escargos à la Nantaise (Nantaise é uma cidade do Vale do Luar)

Chaudrée charentaise (Sopa de peixes e lula)

Queijos de cabra e de ovelha

Jonchée rochefortaise (uma espécie de queijo branco feito com leite coalhado, perfumado com folhas de louro, servido com creme de amêndoas e geleia, sobre uma esteira de junco trançado).

“Acho que só se encontra na terra de origem, mas seria divertido faze-lo aqui”, comenta a cozinheira com um sorriso de quem está prestes a criar algo novo.

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10 – Em sua carta de despedida, enviada ao presidente, Hortense o aconselha usando uma célebre frase de Montesquieu: “a pior doença é a saúde conservada por um regime extremo”.

Aqui estão apenas dez cenas, mas eu poderia listar outras tantas,. Esse filme mexe com minha paixão pela gastronomia, com minha vontade de descobrir novos pratos e, obviamente, meu apetite!

capa

Os Sabores do Palácio/Les Saveurs du Palais

De Christian Vincent, França, 2012

Com Catherine Frot (Hortense Laborie), e Arthur Dupont (Nicolas Bauvois), Jean d’Ormesson (Monsieur Le Président), Hippolyte Girardot (David Azoulay), Jean-Marc Roulot (Jean-Marc Luchet), Philippe Uchan (Coche-Dury), Laurent Poitrenaux (Jean-Michel Salomé), Hervé Pierre (Perrières), Brice Fournier (Pascal Lepiq), Roch Leibovici (Olivier Moncoulon), Thomas Chabrol (o chefe de gabinete), Arly Jover (Mary, a jornalista australiana), Joe Sheridan (John, o cameraman australiano)

Roteiro Etienne Comar & Christian Vincent

Inspirado livremente na história real de Danièle Mazet-Delpeuch

Fotografia Laurent Dailland

Música Gabriel Yared

Montagem Monica Coleman

Produção Vendôme Production, France 2 Cinéma, Wild Bunch, TPS Star. DVD Europa Filmes.

Cor, 95 min