Eu tinha 12 anos quando li Gabriela, cravo e canela. Na estante da sala de minha casa, uma coleção de 14 *livros vermelhos que pertenciam ao meu pai, sempre me chamou à atenção. Mas sempre que eu tentava folhear algumas paginas, ouvia sempre o mesmo alerta, vindo de minha mãe: “Seu pai disse que isso não é livro pra você”. E assim foi, até o dia que desisti de xeretar a estante diante de algum adulto e levei um dos livros para meu quarto, disposta a entender o motivo de tal censura. Folheando rapidamente o dito cujo, um parágrafo me chamou à atenção por conta de tantas informações sobre comida:
“Sobre a alva toalha, cuscuz de milho com leite de coco, banana-da-terra frita, inhame, aipim. Ela ficara parada na porta da cozinha, interrogativa:
– O moço precisa me dizer do que é que gosta.
Engolia pedaços de cuscuz, os olhos enternecidos, a gula a prendê-lo à mesa, a curiosidade a dar-lhe pressa, era hora dos enterros.
Divino aquele cuscuz, sublimes as talhadas de banana frita. Arrancou-se da mesa com esforço. Gabriela amarrara uma fita nos cabelos, devia ser bom morder-lhe o cangote moreno. Nacib saiu quase correndo para o bar. A voz de Gabriela acompanhava-o no caminho, a cantar…”.
Minha leitura clandestina não foi longe. Bastava Dona Iracema me ver com o tal livro vermelho não mão para acabar a minha festa literária/gastronômica. “Hoje você não me escapa, espera seu pai chegar que vamos conversar sobre isso”.
No ano seguinte a TV Globo lançou a novela Gabriela em seu horário das 23 horas, mas desta vez, sabe-se lá por que, toda a família acompanhou a trama sem questionar se a historia era ou não indicada para filha xereta de 13 anos.
Sempre me encantei com a maneira como Jorge Amado conta histórias usando a comida como pano de fundo e as mulheres como grandes divas que ficavam ainda mais encantadoras quando remexiam seus tachos e panelas à beira do fogão.
Recentemente, num documentário da TV Brasil, a psicóloga e filha do escritor, Paloma Amado falou sobre a comida no processo de criação do pai: “Papai dizia que os personagens dele tinham que ser vivos, não poderiam ser uma invenção sem carne, osso, sangue e tal… pra isso eles precisavam comer, e assim, ele alimenta seus personagens nos livros”.
Mas para Jorge não bastava alimentar os personagens. Seu propósito sempre foi mostrar a comida com lente de aumento, em detalhes, mostrando sua capacidade de apurar os sentidos, perfumar e colorir os ambientes e revelar o quão sensual pode ser o ato de cozinhar. Até mesmo Tieta, a heroína forasteira que não sabia cozinhar, não passou impune ao apetite apurado do autor. Em sua volta à Santana do Agreste, ganhou um farto e elegante banquete com especialidades sergipanas digna dos deuses.
“Caro amigo Jorge Amado, o bolo de puba* que eu faço não tem receita, a bem dizer. Tomei explicação com dona Alda, mulher de seu Renato do museu, e aprendi fazendo, quebrando a cabeça até encontrar o ponto. (Não foi amando que aprendi a amar, não foi vivendo que aprendi a viver?)”, trecho do bilhete de Dona Flor para Jorge Amado, publicado na abertura do livro Dona Flor e seus dois maridos.
Superada a censura maternal, no ano seguinte li Dona Flor e seus Dois Maridos (1966). Eu nada entendia de literatura, mas fui capaz de perceber que estava diante de uma linguagem diferente, um texto deliciosamente visual. Sim, um texto visual, colorido e cheiroso como uma cozinha familiar.
Dona Flor me mostrou que mulheres fortes e cheias de personalidade brilhavam ainda mais, e encantavam bem mais que as outras. Cozinheira de mão cheia e professora de culinária, ela literalmente conquistava seus parceiros pelo estômago, e pelos olhos.
Logo após ler o livro, aproveitei a temporada de férias na praia e, com a carteirinha da escola adulterada, consegui assistir ao filme de Bruno Barreto. Adorei, mas entendi ainda mais que Jorge Amado não precisava de imagens, ele sabia como ninguém contar suas histórias em terceira dimensão, usando apenas palavras.
Ao ler Tieta do Agreste cheguei a pensar que Jorge Amado havia deixado a comida de lado. Mas até mesmo a heroína forasteira que não sabia cozinhar, não passou impune ao apetite apurado do autor. Em sua volta à Santana do Agreste, ganhou um farto e elegante banquete com especialidades sergipanas digna dos deuses.
Comida, a saborosa protagonista
“Quem sabe, devido às atividades culinárias da esposa, nesses idílios Vadinho dizia-lhe “Meu manuê de milho verde, meu acarajé cheiroso, minha franguinha gorda”, e tais comparações gastronômicas davam justa idéia de certo encanto sensual e caseiro de dona Flor a esconder-se sob uma natureza tranqüila e dócil. Vadinho conhecia-lhe as fraquezas e as expunha ao sol, aquela ânsia controlada de tímida, aquele recatado desejo fazendo-se violência e mesmo incontinência ao libertar-se na cama.” (Dona Flor e seus dois maridos)
“Comparações gastronômicas davam justa ideia de certo encanto sensual e caseiro de Dona Flor.”(Dona Flor e seus dois maridos).
“E como iria continuar o bar sem os doces e os salgados de Gabriela, sem o seu sorriso diário, sua momentânea presença ao meio dia? […] E como viver sem ela seu sorriso tímido e claro, sua cor queimada de canela, seu perfume de cravo, seu calor, seu abandono, sua voz a dizer-lhe “moço bonito”, o morrer noturno nos seus braços, aquele calor no cio, fogueira de pernas, como? (Gabriela Cravo e Canela).
“Nos fundos da casa havia luzes. Suspendeu o revólver, atravessou o quintal. Viu uma cozinha iluminada. E Gabriela lavando uns pratos. Sorriu, não havia outra igual, mais bonita no mundo.”(Gabriela Cravo e Canela).
“Mas não fora apenas a fama do presépio tradicional que chegara à cidade distante. Chegara também a fama da cozinha de Gabriela. Apesar da sala tão cheia, dona Vera não descansou enquanto não conseguiu arrastar Gabriela para um canto, a pedir-lhe receitas de molhos, detalhes de pratos”. (Gabriela Cravo e Canela).
”Na pobre cozinha, Gabriela fabricava riqueza: acarajés de cobre, abarás de prata, o mistério de ouro do vatapá. A festa começava…
Vinham para o aperitivo, o pôquer de dados, os acarajés apimentados, os bolinhos salgados de bacalhau a abrir o apetite. O numero crescendo, uns trazendo outros, devido às notícias sobre a alta qualidade do tempero de Gabriela. Mas muitos deles demoravam-se agora um pouco mais além da hora habitual, atrasando o almoço. Desde que Gabriela passara a vir ao bar com a marmita de Nacib. Exclamações ressoavam à sua entrada”. (Gabriela Cravo e Canela).
Jorge Amado mostrou ainda o quão saborosa pode ser a fé do bom baiano. Seguidor do candomblé, recheou seus romances com fartos pratos de comidas de santo e ensinou até o que deveria ser servido num velório.
Para saber mais sobre a comida desse escritor baiano e desvendar os segredos de suas receitas, o caminho das pedras é o livro A comida baiana de Jorge Amado, escrito por sua filha, Paloma Amado (editora Panelinha, 2014)